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“Não foi tua culpa!”: Trauma, revivência, culpa e a série “Jessica Jones”


A protagonista da série Jessica Jones, lançada na Netflix em novembro, possui o diagnóstico de Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Jessica, personagem em quadrinhos da Marvel, mora em Nova York e trabalha como investigadora particular desde que sua vida como super-heroína terminou de forma trágica.

Jessica foi dominada pelo vilão Killgrave, que tem a habilidade de controlar mentes. Nesse contexto, foi vítima de abuso sexual e obrigada a cometer alguns crimes. Após achar que Killgrave está morto, Jessica tenta reconstruir a sua vida, mas tem que lidar com sintomas característicos do TEPT que a aterrorizam constantemente.

Logo nos primeiros episódios, já é possível identificar sintomas de reexperiência do evento traumático (lembranças perturbadoras intrusivas e recorrentes, pesadelos, flashbacks dissociativos, sofrimento psíquico e reatividade fisiológica evocados por estímulos relacionados ao trauma).

Há uma cena em que Jessica tem um flashback de Killgrave lhe dizendo “Você quer fazer isso, sabe que quer...”. Nesse momento, ela começa a chorar, ter taquicardia e sua respiração fica acelerada. Os flashbacks são muito comuns em pessoas com TEPT e levam a sofrimento psíquico considerável. A situação traumática não fica no passado: ela é revivida, como se estivesse acontecendo novamente, como se a vítima fosse estuprada todos os dias (no caso de abuso sexual).


“Mas e se o diabo realmente a forçasse a fazer algo? Mesmo se pudesse provar, as pessoas a perdoariam pelo que fez? Você poderia se perdoar um dia?”

Esse pensamento aparece em uma cena da série e reflete o sentimento experienciado pela maioria das vítimas. Além de reviver o evento traumático, a vítima, geralmente, culpa-se pelo acontecimento. A culpa está entre os sintomas mais comuns após situações traumáticas. Frequentemente, a culpa pode intensificar ou agravar as consequências do trauma. Ela pode favorecer o desenvolvimento de sintomas de depressão, ideação suicida e abuso de substâncias (na série, a personagem faz abuso de álcool).

No Manual de Diagnóstico e Estatística – 5ª edição (DSM 5), esse aspecto foi contemplado nos critérios diagnósticos do TEPT. A pessoa pode passar a ter cognições distorcidas persistentes a respeito da causa ou das consequências do evento traumático que levam o indivíduo a culpar a si mesmo ou aos outros. Além disso, pode apresentar estado emocional negativo persistente (ex: medo, pavor, raiva, culpa ou vergonha).

Muitas vítimas de estupro passam, após um trauma, a se sentir culpadas por não terem gritado, lutado ou fugido. Mas o que elas precisam saber é que, na verdade, não tinham controle sobre isso. Não foi culpa delas.

Por que não foi culpa delas?

Uma das reações comuns em uma situação traumática, porém pouco conhecida e discutida é a imobilidade tônica. A imobilidade tônica é uma das estratégias de defesa involuntárias mais frequentes de animais diante do perigo e extremamente comum em humanos. Segundo Eliane Volchan, pesquisadora do nosso laboratório (Laboratório Integrado de Pesquisa em Estresse – LINPES), esta é uma reação adaptativa, com a qual alguns animais conseguem escapar de um predador. Imóveis, sem se debater, muitas vezes eles provocam o desinteresse do predador e passam a ter maiores chances de sobrevivência.

Portanto, a imobilidade tônica, essa “paralisação” durante uma situação extremamente traumática é uma reação adaptativa de defesa do organismo. É uma reação automática de defesa diante de um perigo. Esse pensamento baseado em pesquisas científicas precisa ser difundido e discutido.

A vítima de estupro ainda tem que lidar com a sociedade que culpabiliza as vítimas, principalmente mulheres. Portanto, todos os esforços no sentido de amenizar o sofrimento, apoiá-las e fortalecê-las são válidos e necessários.

Jessica Jones é uma série importante por trazer à tona todas essas questões cruciais. Vale a pena assistir para além do entretenimento. No início do tratamento para o TEPT, é realizada a psicoeducação, onde o paciente aprende sobre o transtorno, sobre as reações comuns, sobre o porquê das mesmas. O entendimento desses aspectos é fundamental para que o sentimento de culpa seja racionalmente questionado e, aos poucos, diminua a sua intensidade. O paciente sente-se mais compreendido e validado em seu sofrimento, aprende a “se perdoar”, como a personagem questiona se é possível. O tratamento pode então, progredir com as técnicas de reestruturação cognitiva e exposições imaginária e ao vivo até que ele perceba e sinta que o acontecimento traumático ficou no passado.

Uma paciente da nossa equipe suplicou uma vez dizendo “Quero a minha vida de volta!”. É isso o que buscamos, juntos, com o tratamento e é gratificante vê-los conseguindo, realmente, ter “a vida de volta”.


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